A História da Segunda Guerra Mundial nos dá um exemplo da diferença que pode fazer a aplicação de alguns conceitos, hoje bem conhecidos, da Gestão de Conhecimentos, e a atenção aos aspectos culturais da organização.
Quem se interessa por esse período histórico e, especialmente, pela Guerra Aérea e Aeronaval, tanto na Europa quanto no Pacífico, espanta-se, a principio, ao ver o desempenho relativo dos pilotos de caça norte-americanos, comparados aos japoneses e alemães. Esses últimos parecem ter tido desempenho muito melhor, apesar de terem perdido a guerra.
Um “Ás” era definido, por cada Força Aérea, como um piloto de caça que tivesse obtido um número de “vitórias” superior a um nível pré-determinado. Uma “vitória” é a derrubada confirmada de um avião inimigo de qualquer tipo (um bombardeiro, um transporte, outro caça ou qualquer outra aeronave militar).
Quando se lê a respeito dos ases alemães e japoneses, é freqüente vermos referências a números de vitórias superiores a 200 ou 300. Já um piloto americano era considerado um “ás” com 10 vitórias. Olhando assim, parece ser um ás meio “fajuto”, não é?
O fato é que os americanos adotaram uma política muito inteligente, que era a de condecorar o piloto como ás quando ele obtivesse sua décima vitória, e enviá-lo de volta aos Estados Unidos para ser instrutor de combate aéreo. Promoção, medalha, fanfarra, festa, tapinhas nas costas e “go back home”. Os pilotos nem sempre gostavam disso, pois, para muitos, isso era como uma “aposentadoria compulsória”, afastando-os das glórias do combate no front.
Essa política, porém, mostrou-se extremamente acertada, a ponto de Matsuo Fuchida – o comandante das forças japonesas que atacaram Pearl Harbor e da força aérea embarcada nos porta-aviões japoneses até a batalha de Midway – dizer que esta foi uma das razões para a derrota do Japão na Guerra. O livro de Fuchida serviu de base para o roteiro do clássico de Hollywood “Midway”, com Charlton Heston. O próprio Fuchida aparece como personagem no filme.
O Japão havia adotado o que Fuchida chamou de “Política dos Ases”, em que os pilotos mais experientes e habilidosos eram mantidos nos porta-aviões, combatendo até a morte. Como resultado, não havia instrutores experientes no Japão para treinar novos pilotos. No fim da Guerra, havia pouquíssimos pilotos japoneses experientes. Os pilotos Kamikase, aliás, tinham um treinamento de vôo de duas semanas, e eram os piores entre os alunos-piloto (os que apresentavam alguma habilidade eram destacados para missões “normais” de combate).
Assim, os EUA deram um exemplo de “transformação do conhecimento tácito em tácito”, para usar o modelo de Nonaka e Takeuchi (1997). Segundo Polany (1966) o conhecimento pode ser tácito ou explícito. O conhecimento tácito é pessoal, específico ao contexto e difícil de ser formulado e comunicado. Uma ótima cozinheira pode não ser capaz de explicar formalmente o que é que faz com que seus quitutes sejam tão bons. O conhecimento explícito, por sua vez, é codificado, transmissível em linguagem formal e sistemática. Pode, por exemplo, ser adquirido em livros. Para Nonaka e Takeuchi, os dois tipos de conhecimento podem ser “convertidos”, ou transmitidos, um para outro, de modos distintos. A conversão de tácito para tácito é chamada pelos autores de “socialização”, que é um processo de compartilhamento de experiências. É exatamente o caso aqui, o ensino prático de pilotagem de aviões.
A instrução de vôo é um exemplo límpido deste tipo de transmissão de conhecimentos. Por mais que o aluno-piloto leia manuais, aprende a voar voando. E o instrutor é essencial nesse processo, quando a demonstração e a imitação são os fatores mais importantes.
Nada substitui um instrutor experiente em combate numa situação dessas. O fato de os novos caçadores americanos terem sido ensinados por pilotos de caça excepcionais pode ter feito uma enorme diferença na Guerra.
Não deixa de ser irônico que tenham sido dois autores japoneses a destacar o bom gerenciamento do conhecimento tácito como a causa principal da superioridade de algumas empresas japonesas sobre americanas, em termos de inovação, uma vez que o episódio que estamos considerando trata justamente da superioridade americana nessa empreitada sobre os japoneses, na Guerra, através exatamente do conhecimento tácito.
Cultura
Não seria exagerado afirmar que as Culturas Organizacionais das diferentes forças aéreas tiveram influência decisiva na política para com os ases e, portanto, nos seus resultados durante a guerra.
A Cultura, entre outras coisas, diz respeito às crenças e valores compartilhados pelos membros da organização. Na carreira militar, o “caçador”, ou seja, o piloto de caça, é normalmente visto como um herói solitário e, de fato, é comum que esses pilotos sejam frequentemente individualistas, de forma um pouco paradoxal, já que as Forças Armadas são, essencialmente, um empreendimento baseado do trabalho em equipe.
A Cultura das forças aéreas japonesa e alemã era de forte individualismo, e o “estrelismo” dos ases era incentivado pelos altos escalões. Os ases eram propostos como heróis nacionais e tratados como celebridades, como exemplo para os concidadãos. Havia, inclusive, um incentivo insano à competição interna, em que os pilotos procuravam em primeiro lugar obter mais vitórias do que os demais pilotos do esquadrão, às vezes levando-os a colocar isso acima dos objetivos ou mesmo da segurança da missão.
Na força americana, sem matar totalmente essa característica, havia muito maior atenção aos valores de trabalho em equipe e transmissão de conhecimento e experiência. É claro que existia aí também a competição, mas sua importância era muito menor, e tudo era feito em um clima de camaradagem.
Lições
Este exemplo serve para ilustrar como a Cultura Organizacional pode influenciar esforços de Gestão de Conhecimento nas organizações. É praticamente impossível fazer dar certo um esforço desse tipo se a cultura for, por exemplo, de incentivo ao individualismo e à competição interna. Se minha empresa me incentiva a ver meu colega de trabalho como um concorrente, porque eu pararia o que eu estou fazendo para gastar meu precioso tempo para, ainda por cima, passar para meu concorrente (o colega!) o meu conhecimento?
Quando falo de Gestão do Conhecimento, não me refiro somente a esforços “explícitos” nesse sentido, como, por exemplo, um “Projeto de Portal Corporativa com Ferramentas de Colaboração” (Wiki, por exemplo). Quase todos os grandes projetos que as empresas estão desenvolvendo hoje, como implantação de CMMI, COBIT, ITIL, PMO e que tais, possuem um imenso componente de Gestão do Conhecimento. Você não pode esperar por um “Projeto de Gestão de Conhecimento” para colocar essas práticas em ação se você estiver implantando, por exemplo, melhoria de processos segundo o CMMI. A definição de um processo puro e simples, por exemplo, não garante seu entendimento e utilização. Novos colaboradores aprendem fazendo e, principalmente, através do exemplo dos colegas mais antigos. Ou seja, socialização do conhecimento. E, sem isso, evidentemente, não teremos a institucionalização, requerida pelo modelo.
A Cultura se manifesta em artefatos visíveis. Não basta um belo discurso de incentivo ao compartilhamento do conhecimento. As práticas de Gestão de Pessoas, por exemplo, tem que estar alinhadas com esses valores. Se, por exemplo, os critérios para avaliação de desempenho, promoção e remuneração variável estiverem focados no desempenho individual do colaborador, ele receberá da organização a mensagem de que o discurso é “só pra inglês ver”. Portanto, esforços de Gestão do Conhecimento só dão certo com uma Cultura adequada, que se manifeste em políticas e práticas de Gestão de Pessoas consistentes com ela. Ao escolher alguém para promoção, a empresa tem que levar em conta o quanto ele se dedica a compartilhar seus conhecimentos com os colegas. Na hora de conceder bônus, o tempo e o esforço dedicados a ensinar os colegas têm que ser levados em conta.
Ases solitários e instrutores
Outra lição importante aqui deveria ser absorvida pelas empresas. Quando o conhecimento tácito está envolvido, é muito mais produtivo que os trabalhadores mais experientes gastem seu tempo instruindo os mais novos do que apenas executando suas tarefas. Um Desenvolvedor experiente, por exemplo, pode aumentar a qualidade do desenvolvimento de software em todas as equipes de uma empresa, caso seja destacado para o “peer review” do trabalho de todos. O resultado final será o aumento da qualidade no trabalho das diversas equipes. Caso este expert seja mantido a cuidar apenas do “seu sistema”, este poderá alcançar enorme qualidade, mas apenas ele. Poderemos ter um software fantástico junto a todos os outros de qualidade medíocre. Caso o expert seja destacado para revisar o trabalho dos outros, poderemos ter todas as equipes produzindo software de boa qualidade, mesmo que nenhum deles seja excepcional. Na média, o resultado é sempre melhor. Mas é difícil encontrar empresas dispostas a abrir mão do trabalho especializado de um expert, transformando-o em formador das novas gerações de trabalhadores. A “Política dos Ases” japonesa, como se vê, fez escola.
Publicado originalmente em 1-11-2002
Revisado e ampliado em 18-9-2007
Referências:
NONAKA, I. e Takeuchi, H. Criação de Conhecimento na Empresa. São Paulo, Campus,1997.
POLANY, M. Personal Knowledge. Chicago, University of Chicago Press, 1958.
FUCHIDA, M. e Okumiya, M. Midway. São Paulo, Flamboyant, 1967.